terça-feira, 18 de novembro de 2008

O Apelo da Água de Italo Calvino


Avanço o braço para o duche, pouso a mão no manípulo e movo-o lentamente fazendo-o rodar para a esquerda.
Acabei de acordar, tenho os olhos ainda cheios de sono, mas estou perfeitamente consciente de que o gesto que faço para inaugurar o meu dia é um acto decisivo e solene, que me põe em contacto com a cultura e a natureza ao mesmo tempo, com milénios de civilização humana e com acção das eras geológicas que deram forma ao planeta. O que peço ao duche é em primeiro lugar que confirme como senhor da água, como pertencente à parte da humanidade que herdou dos esforços de gerações a prerrogativa de chamar a si a água como simples rotação de uma torneira, como detentor do privilégio de viver num século e num lugar em que se pode gozar em qualquer momento da mais generosa profusão de águas límpidas. E sei que para que este milagre se repita todos os dias se deve verificar uma série de condições complexas, pelo que a abertura de uma torneira não pode ser um gesto distraído e automático, mas exige uma concentração, uma participação interior.
Eis que o meu apelo a água sobe pelas canalizações, faz pressão nos sifões, levanta e baixa as bóias que regulam o afluxo nas tinas, assim que uma diferença de pressão a atrai ela acorre, propaga o seu apelo através de junções, espalhando-se pela rede dos colectores, despeja e enche os depósitos, preme contra os diques das albufeiras, escorre pelos filtros dos depuradores, avança ao longo de toda a frente das condutas que a transportam para a cidade, depois de tê-la recolhido e acumulado numa fase do seu ciclo sem fim, talvez destilada pelas bocas dos glaciares descendo por íngremes torrentes, talvez aspirada pelas faldas subterrâneas, escorrendo através dos veios da rocha, descida do céu numa densa cortina de neve chuva granizo.
Enquanto com a direita regulo o misturador, estendo a esquerda aberta em concha para lançar a primeira chapada de água para os olhos e acordar definitivamente, e entretanto oiço a grande distancia as ondas transparentes e frias e subtis que afluem para mim por quilómetros e quilómetros de aqueduto através de planícies vales montanhas, oiço as ninfas das fontes que vêm ao meus encontro pelas suas liquidas vias, e daqui a pouco debaixo do duche irão envolver-me com as suas carícias filiformes.
Mas antes que uma gota assome a cada furo da roseta e se prolongue num estilicídio ainda incerto para depois logo todas juntas se incharem numa auréola de jactos vibrantes, tem de se suportara espera de todo um segundo, um segundo de incerteza em que nada me granate que o mundo contenha ainda água e não se tenha transformado num planeta seco e pulverulento como os outros corpos celestes mais próximos, ou pelo menos que haja água bastante para que eu possa recebê-la aqui na concha das minhas mãos, longe como estou de todas as albufeiras ou nascentes, no coração desta fortaleza e cimento e asfalto.
No verão passado abateu-se uma grande seca sobre a Europa do Norte, as imagens no vídeo mostravam grandes extensões de campos de árida crosta gretada, rios antes opulentos que descobriam com embaraço o seu leito em seca, bovinos que raspavam o focinho na lama procurando alívio para a secura, filas de gente com ânforas e bilhas diante uma magra fonte. Assalta-me a preocupação de que a abundância em que chapinhei até hoje seja precária e ilusória, que a água poderia tornar a ser um bem raro, transportado com esforço, lá vem o aguadeiro com o barril a tiracolo que lança o seu pregão para as janelas para que os sequiosos desçam a comprar um copo da sua preciosa mercadoria.
Se agora mesmo uma tentação de orgulho titânico me tinha aflorado ao assenhorar-me das alavancas de comando das canalizações, bastou um instante para me fazer considerar o meu delírio de omnipotência como fátuo e injustificável, e é com trepidação e humildade que espreito a chegada do borbotão que se anuncia pelo cano acima com trémito baixinho. Mas se fosse apenas uma bolha de ar que passa pelas tubagens vazias? Penso no Sahara que inexoravelmente avança todos os anos uns poucos centímetros, vejo no meio da névoa tremular a miragem verdejante de um oásis, penso nas planícies ardidas da Pérsia drenadas por canais subterrâneos para cidades de cúpulas de majolica azul, percorridas por caravanas nómadas que todos os anos descem do Cáspio ao Golfo Pérsico e acampam em negras tendas onde acocorada no chão uma mulher que segura com os dentes um véu de cor berrante deita a água para o chá de um odre de couro.
Levanto os olhos para o duche esperando que daqui a m segundo os borrifos me chovam nas pálpebras semicerradas, libertando o meu olhar ensonado que agora está explorando a roseta de chapa cromada coberta de furinhos orlados de calcário, e eis que nela me surge uma paisagem lunar cravejada de crateras calcinosas, não, são os desertos do Irão que estou a ver do avião, ponteados de pequenas crateras brancas em fila a distâncias regulares, que assinalam a viagem da água nas condutas há três mil anos em funcionamento: o «qanat» que escorrem subterrâneos por pedaços de cinquenta metros e comunicam com a superfície através destes poços a que pode descer um homem, preso por uma corda, para a manutenção da conduta. Eis que também me projecto naquelas crateras escuras, num horizonte virado do avesso desço pelos furos do duche como pelos poços dos «qanat» para a água que corre invisível com amortecido rocegar.
Uma fracção de segundo basta-me para recuperar a noção de cima e de baixo: é de cima que a água vem ter comigo, após um irregular itinerário em subida. Os percursos artificiais da água nas civilizações sedentes escorrem debaixo da terra ou à superfície, ou seja, não se diferenciam muito dos percursos naturais, enquanto em contrapartida o grande luxo das civilizações pródigas de linfa vital é o de fazer a água vencer a força da gravidade, fazê-la subir para depois tornar a cair: e eis que se multiplicam as fontes com jogos de água e repuxos, os aquedutos de altos pilares. Nas arcadas dos aquedutos romanos o imponente trabalho mural serve de apoio à leveza de um borbotão suspenso lá em cima, uma ideia que exprime um paradoxo sublime: a monumentalidade mais maciça e durável ao serviço do que é fluido e passageiro e impalpável e diáfano.
Aplico o ouvido à grade de correntes suspensas que me circunda e domina, à vibração que se prolonga pela floresta das tubagens. Sinto por cima de mim o céu do Aro Romano sulcado pelas canalizações em cima das arcadas em ligeiro declive, e ainda mais acima que as nuvens, que ao desafio com os aquedutos erguem imensas quantidades de água em corrida.
O ponto de chegada do aqueduto é sempre a cidade, a grande esponja feita para absorver e irrigar, Ninive e os seus jardins, ma e as suas terás. Uma cidade transparente escorre continuamente na espessura compacta das pedras e da cal, uma rede de fios de água rodeia os muros e as ruas. As metáforas superficiais definem a cidade como aglomerado de pedra, diamante facetado ou carvão fuliginoso, mas toda a metrópole também pode ser vista como uma grande estrutura líquida, um espaço delimitado por linhas de água verticais e horizontais, uma estratificação de lugares sujeitos a marés e inundações e ressacas, onde o género humano realiza um ideal de vida anfíbia que corresponde à sua vocação profunda.
Ou talvez seja a vocação profunda da água a que a cidades realiza: o subir, o jorrar, o escorrer de baixo para cima. É na dimensão da altura de todas as cidades se reconhecem: uma Manhattan que ergue os seus reservatório no cume dos arranha-céus, uma Toledo que durante séculos teve de tirá-la barril a barril das correntes do Tejo lá em baixo e carregá-los no dorso de mulas ate que, para delicia do melancólico Filipe II, rangendo põe em movimento «el artificio de Juanelo» e transvaza pela ribanceira acima do rio ara o Alcázar, milagre de curta duração, o conteúdo de baldes oscilantes.
E portanto eis-me pronto a receber a água não como algo que me seja devido naturalmente mas como um encontro de amor cuja liberdade e felicidade é proporcional aos obstáculos que teve de superar. Para viver em plena confidência com a água os romanos puseram no centro da sua vida pública as termas; hoje em dia para nós esta confidência é o coração da vida privada, aqui debaixo deste duche cujos regatos tantas vezes vi correr pela tua pele, náiade nereida ondina, e assim ainda te vejo aparecer e desaparecer no abanar dos esguichos, agora que a água jorra obedecendo veloz ao meu apelo.


CALVINO, Italo. O Apelo da Água in A Memória do Mundo. Teorema: Lisboa, 1995.

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