sexta-feira, 24 de abril de 2009

A minha bagagem... A bagagem do Viajante...


Era quase noite fechada quando chegámos à quinta onde ficaríamos para o dia seguinte. Metemos os animais num barracão e comemos o farnel leve, perto de uma janela iluminada, porque não tínhamos querido entrar (ou não nos deixaram?). Enquanto comíamos, veio um criado dizer-nos que poderíamos dormir na cavalariça. Deu-nos duas mantas lobeiras e foi-se embora. Soltaram-se os cães, e nós não tivemos mais remédio que ir dormir. A porta da cavalariça ficaria aberta toda a noite, e assim nos convinha, pois teríamos de sair pela madrugada, muito antes de nascer o sol, para chegarmos a Santarém no principiar da feira.
A nossa cama era um extremo da manjedoura que acompanhava toda a parede do fundo. Os cavalos resfolgavam e davam patadas no chão empedrado, coberto de palha. Deitei-me como num berço, enrolado na manta, respirando o cheiro forte dos cavalos, toda a noite inquietos, ou assim me pareciam nos intervalos do sono. Sentia-me cansado, com os pés moídos. A escuridão era quente e espessa, os cavalos sacudiam as cabeças com força, e o meu tio dormia. Os ruídos da noite passavam por sobre o telhado. Adormeci como um santo: assim minha avó diria se ali estivesse.


José Saramago, A Bagagem do Viajante, p. 24

1 comentário:

Anónimo disse...

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